Introdução
Pretende-se divulgar recomendações
relativas à alimentação no primeiro ano de vida em geral e em particular à
idade de início e tipo de alimentos a introduzir tendo por
base a evidência
científica, relativamente a efeitos a curto e longo termo para a saúde.
Igualmente se pretende ajudar os pais,
os familiares e a população em geral a reflectirem sobre as razões,
aparentemente inexistentes ou insondáveis de comportamentos alimentares dos bebés
e crianças.
O aleitamento materno
Para a Organização Mundial de Saúde,
aleitamento materno exclusivo significa que o lactente recebe unicamente leite
materno e nenhum outro líquido ou sólido à excepção de gotas ou xaropes de
vitaminas, suplementos minerais ou fármacos.
O aleitamento será predominante, se
além do leite materno o lactente receber outros líquidos não lácteos, tais como
água e chás sem conteúdo energético. Um e outro representam o aleitamento
materno total. O aleitamento será misto, se além do leite materno o lactente
receber uma fórmula infantil e será parcial se o aleitamento materno for
acompanhado de alimentação complementar.
Embora o desejável seja o aleitamento
materno exclusivo durante o primeiro semestre de vida, o aleitamento por um menor
período ou o aleitamento parcial têm também um efeito benéfico. É ainda
desejável que o aleitamento materno prossiga ao longo de todo o programa de
diversificação alimentar e enquanto for mutuamente desejado pela mãe e
lactente.
Múltiplos estudos científicos registam
uma associação do aleitamento materno a um menor risco de otite média,
gastroenterite aguda, infecções respiratórias baixas severas, dermatite
atópica, asma, obesidade, diabetes de tipos 1 e 2, leucemia, síndrome de morte
súbita no lactente e enterocolite necrotizante. Não
se registou nenhuma associação entre o aleitamento materno em recém-nascidos de
termo e o desempenho cognitivo.
Aspectos biológicos e de
desenvolvimento associados à diversificação alimentar
1. Maturação fisiológica e neurológica
A maturação fisiológica da função
gastrintestinal e renal é necessária para uma adequada digestão, absorção e
metabolização dos alimentos para além do leite. De igual modo a evolução
maturativa do neuro-desenvolvimento representa um processo necessário para uma
progressão segura do plano de diversificação alimentar até à alimentação
familiar.
É consensualmente reconhecido que do
ponto de vista da evolução maturativa, o lactente normal de termo esteja
preparado para o início da diversificação alimentar a partir dos 4 meses de
vida.
Aos 4 meses o lactente ganha uma maior
estabilidade maxilar e do pescoço e o padrão primitivo de sucção começa a
modificar-se.
Entre os 5 e os 8 meses ocorre uma
transição progressiva das funções oromotoras com a passagem da sucção para a
mastigação.
A partir deste período o lactente
desenvolve assim a capacidade de mastigação devendo esse processo ser
estimulado de modo a facilitar a integração na alimentação familiar.
Há um período crítico para a
introdução de sólidos na alimentação do lactente. Se a sua introdução não
ocorrer até aos 10 meses, aumentará o risco de dificuldades na alimentação com
impacto negativo nos hábitos dietéticos em idades posteriores.
2. Aspectos nutricionais
A evidência científica tem demonstrado
benefícios para a saúde com o aleitamento materno exclusivo durante os
primeiros 6 meses de vida.
A partir desta idade
o volume de leite ingerido é insuficiente, não sendo possível suprir
adequadamente as necessidades energético-proteicas e em micro nutrientes. É
assim necessário diversificar a alimentação a partir dos 5-6 meses de vida
tendo em conta aspectos nutricionais e de desenvolvimento do lactente de modo a
suprir adequadamente em nutrientes o lactente e a permitir uma transição entre
a alimentação láctea exclusiva e a alimentação familiar.
A limitada evidência científica
relativamente ao processo de diversificação alimentar reflecte-se em
consideráveis diferenças entre as recomendações alimentares nos diferentes
países.
Aspectos relacionados com culturas e
tradições regionais justificam também essas diferenças.
3.A influência precoce das preferências
alimentares
O aforismo “nós somos
aquilo que comemos” é frequentemente utilizado para sublinhar o papel relevante
da alimentação no desenvolvimento e bem estar do ser humano.
Se efectivamente somos
aquilo que comemos então algo de errado se passará com a nossa alimentação, já
que a taxa de excesso de peso e obesidade atinge cerca de um terço de
adolescentes. Apesar de preocupante em si mesma, o grande problema associado à
obesidade é a sua íntima correlação com a síndroma metabólica (conjunto de fatores de risco, essencialmente
cardiovasculares, que têm por base a obesidade abdominal, em que os indivíduos
portadores têm elevada probabilidade de desenvolver doença cardiovascular -ataque
cardíaco e AVC- e diabetes, mesmo quando os fatores de risco estão apenas
ligeiramente elevados),
cuja incidência está também a aumentar na idade pediátrica.
Por outro lado, desde
muito cedo nos habituamos a comer aquilo que comemos, como demonstram estudos
em que a concordância de preferência para a maioria dos sabores se mantém entre
os 2-3 anos e os 8 anos, com valores altos para pão, massas, sobremesas e
valores baixos para fruta e vegetais crus ou cozinhados.
Muitos dos nossos
comportamentos alimentares resultam de milhões de anos de evolução e
programação genética. Foram-se seleccionando genes que determinavam
comportamentos alimentares específicos, como a preferência pelos doces (maiores
fornecedores de calorias), em detrimento dos amargos ou ácidos (associados a
toxinas de plantas, principalmente alcalóides), bem como a preferência pelos
alimentos gordos ou derivados da carne. Hoje, tal como nesse passado remoto, o
bebé humano nasce com um gosto inato para o doce e uma aversão ao amargo. A
preferência pelo salgado vai-se desenvolvendo a partir do segundo semestre de
vida. O reconhecimento dos sabores é modulado por receptores localizados nos
botões gustativos da língua e palato (TAS1 para os doces, TAS2 para os amargos).
Há estudos interessantes
que põem em evidência que a sensibilidade ao sabor ácido tem uma base
hereditária, embora não sejam conhecidos ainda os receptores ou os seus genes.
Estudos em famílias demonstram que o gosto pela fruta se desenvolve
progressivamente dos 6 aos 18m e se correlaciona positivamente com a capacidade
de aceitar sabores mais ácidos (entre os 12-18m) e com a influência das mães.
Por outro lado a sensibilidade ao sabor salgado parece depender mais de
factores ambientais de exposição que de factores hereditários. Sabe-se que em
crianças o interesse pelo salgado aumenta a partir do 2º semestre de vida até
atingir um pico pelo 3-4 anos. A exposição mais precoce aumenta também o
interesse por esse sabor. Curiosamente há estudos que revelam uma preferência
pelo sabor salgado em crianças cujas mães sofreram de hiperemesia gravídica (caracterizada
por náuseas
e vómitos
de tal forma graves que provocam perda de peso
e desidratação) ou que apresentaram baixo peso à nascença.
A relutância em aceitar
novos sabores (neofobias alimentares), que se acentua a partir do 1º ano de
vida (o que, num momento em que a criança começa a deambular e mais exposta a
possíveis alimentos tóxicos no seu ambiente, poderá ter trazido claras
vantagens evolutivas) é um traço em que a hereditariedade desempenha um papel
determinante. No entanto aqui também o tipo e textura do alimento condiciona o
maior ou menor grau de neofobia, ou seja as crianças neofóbicas são-no preferencialmente
para alimentos como a carne, vegetais ou frutas e menos para alimentos doces ou
ricos em gordura. Conhecendo estes mecanismos que a evolução e seleção natural
foi apurando é pois mais apropriado dizer que nós atualmente comemos o que
somos ou, mais precisamente, que somos o que comemos há milhares de anos atrás.
Estaremos então condenados pelos nossos genes a uma dieta monótona com os
riscos que isso significa para o futuro (excesso de calorias, ingestão de
substâncias potencialmente nocivas)? A resposta é não, porque podem
contrariar-se os mecanismos inatos de preferência alimentar, através da
experiência precoce, da familiarização com o sabor e da variedade alimentar.
Os botões gustativos estão
completamente formados no feto pela 15ª semana de gestação e pela 25ª já parece
haver neurónios olfactivos funcionais. Assim o feto está precocemente equipado
para reconhecer sabores voláteis da dieta materna, entretanto transferidos para
o líquido amniótico, quer através da deglutição, quer através da inalação
deste. Esta capacidade de reconhecimento precoce de sabores presentes na dieta
da grávida traduz-se em níveis de aceitação mais fácil dos mesmos quando
administrados aos bebés frutos dessas gestações, na altura da diversificação
alimentar, como bem ficou patente em estudos científicos. Outros trabalhos põem
ainda em evidência a importância da passagem desses mesmos sabores através do
leite materno, conferindo ao lactente amamentado uma maior capacidade para se
adaptar à diversificação alimentar, nomeadamente a sabores de frutos e
vegetais, desde que as mães os consumam enquanto amamentam.
Não fazem pois sentido as
restrições em termo de alimentação (sobretudo quando incluem alimentos
saudáveis) a que as mães que amamentam se impõem, por motivos variados que vão
do medo das alergias à hipotética possibilidade de determinado alimento
ingerido ser actor de cólicas no bebé, como o demonstra um estudo, em que 89%
das mães que amamentaram eliminaram nesse período, na sua alimentação, um
conjunto de produtos que incluía as couves, os feijões e as laranjas. A
capacidade do bebé aceitar novos sabores, principalmente se amargos ou ácidos
(vegetais e frutas) vai aumentando gradualmente à medida que se vai
familiarizando com esse sabor e muitas vezes são precisas em média 11
tentativas para finalmente ter sucesso, pelo que se deve encorajar a
persistência na oferta alimentar.
Uma outra estratégia de
aceitação de sabores passa também pela variedade, precoce, dos alimentos
oferecidos, sobretudo no campo dos vegetais, que induz nos bebés uma maior
capacidade de gostar à primeira de alimentos que nunca haviam experimentado. É
interessante verificar como estas estratégias aparentemente antagónicas
funcionam igualmente bem e dependem muitas vezes de práticas culturais das sociedades,
como ficou demonstrado num estudo em duas regiões equivalentes em França e na
Alemanha, em que no primeiro destes países as mães preocupadas com a qualidade
do sabor apresentam uma extrema variedade de vegetais com boa aceitação, ao
contrário da Alemanha, com uma dieta mais monótona, em que o sabor acaba por
ser aceite pela persistência com que é oferecido.
Estes factos demonstram
que apenas a estratégia de “se não gosta não ofereço e só lhe apresento o que
sei que ele gosta “ é que não funciona para a aquisição de uma paleta mais
variada de alimentos.
Estes aspectos são tanto
mais importantes quanto se sabe que a janela para a habituação aos sabores é
estreita, começando a fechar-se pelos 2 anos e encerrando aos 3 anos, ou seja
uma criança com um portfolio
alimentar reduzido
pelos 3 anos, vai manter essa monotonia alimentar até à adolescência,
consumindo geralmente uma dieta rica em calorias mas pobre em nutrientes.
Hoje já não é a
modificação genética a principal causa da adaptação às mudanças ambientais.
Essa adaptação resulta da modificação de comportamentos aprendidos pela
divulgação de informação.
Para induzir a modificação
do comportamento alimentar (geneticamente determinado), os memes são hoje de
primordial importância: positivos quando encorajam a variedade; negativos
quando, por medos cientificamente pouco explicados (como por exemplo, o receio
de alergias) afunilam a experiência alimentar e tornam ainda mais desajustado o
nosso património genético ao ambiente em que ele se desenvolve.
Atentas a este facto, as
últimas recomendações da American
Academy of Pediatrics (AAP) e da European Society for Paediatric Gastroenterology Hepatology and
Nutrition (ESPGHAN) para
a diversificação alimentar recusam o fundamentalismo alergológico e enfatizam o
valor do aleitamento materno e da experiência precoce da variedade de sabores,
descartando respectivamente dietas hipoalergénicas nas grávidas ou mães
lactantes (como inúteis ou mesmo perniciosas) e o atraso na introdução de
alimentos tradicionalmente considerados alergénicos, mesmo em famílias de
risco.
Como médico, orientado
para a prevenção, em que não estou apenas a velar pela saúde da criança, mas
muito principalmente pela da do adulto em que se tornará, não devo e não posso
estar alheio a estes aspectos e devo promover práticas conducentes ao
alargamento atempado da experiência alimentar.
Nota: Elaborado por Aristides Sousa, Médico de Saúde Pública, Coordenador da Unidade de Saúde Pública Barcelos/Esposende. Fotografia do topo da notícia obtida a partir do banco de imagens grátis pixabay.
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